quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A Papisa Joana

 
Em meados do séc. IX, em plena “era das trevas” da Idade Média, nasceu em Ingelheim (ou, segundo alguns, em Mayence, capital do estado da Renânia-Palatinato) uma menina Joana invulgar e precocemente inteligente (aprendeu a ler e a escrever desde muito cedo e na adolescência já dominava o grego e o latim).
O seu excepcional talento recomendava o seu ingresso numa academia onde pudesse desenvolver o seu saber e aplicar a sua prodigiosa inteligência.
Naquele tempo só um convento era apropriado para tal fim e o mais próximo era o convento de Fulda.
No entanto, dado o estatuto da mulher naquele tempo, o ingresso era limitado aos homens. Joana assumiu, então, uma identidade masculina sob o nome Ioannes Anglicus (noutra versão, Joana era amante de um monge o que a levou a disfarçar-se de homem, tendo ido ambos para a Grécia).
Passados uns anos, decidiu dirigir-se a Roma, centro do poder religioso. Aí, ganhou imenso prestígio e teve um percurso fulgurante: foi nomeada Secretário da Cúria e depois cardeal. Em 855, com a morte do Papa Leão IV, foi ordenada Papa com o nome de João VII.
           

Certo dia, durante uma procissão e montada a cavalo, Joana sentiu violentas dores que a fizeram caír do cavalo. Ali, numa rua estreita entre o Coliseu e a Igreja de S. Clemente, designada antigamente por Via Sacra e hoje por Rua Evitada (hoje os Papas evitam essa rua), deu à luz uma criança. “Milagre, milagre”, exclamaram alguns cardeais. Outros dizem que a multidão em fúria apedrejou-a até à morte e aplicou de imediato a justiça romana: amarrou-a pelos pés à cauda de um cavalo o qual percorreu meia légua, finda a qual Joana e a criança mortas foram enterradas nesse mesmo local com uma lápide onde se podia ler “Peter, Pater Patrum, Papisse
Prodito Partum” (Pedro! Pai dos Pais, castiga o parto da papisa). Segundo outros, foram encarceradas num castelo papal até ao fim das suas vidas.
A lenda (que data de 1250) pretende que a Papisa Joana esteve no trono de S.Pedro 2 anos, 7 meses e 4 dias e que aquele esteve vago durante 1 mês até à eleição de Bento III (Setembro 855 – Abril 858).
Factos: os Papas, nas suas procissões pela Via Sacra, evitam a Rua Evitada; em 1276, após rigorosa investigação, o Papa João XX mudou o seu nome para João XXI; até 1601 existiu na catedral de Siena um busto da Papisa mandado retirar pelo Papa Clemente VIII. 


Outro facto importante e inegável é a utilização nas cerimónias de consagração papal, desde o séc. IX até ao séc. XVI, de uma cadeira (sedia stercoraria) cujo assento tinha um buraco que permitia a palpação do recém-eleito de modo a assegurar que o futuro Papa era homem (duos habet et bene pendentes). Só então o Camerlengo anunciava "Habemos Papam".
Verdade? Lenda espalhada como vingança pelos inimigos do papado?
Há falta de registos sobre a história, embora o assunto tenha merecido estudo e discussão entre os estudiosos até ao séc. XIX. 

“Il y a bien de la différence entre rire de la religion, et rire de ceux qui la profanent par leurs opinions extravagantes”, Pascal.

Bibliografia: Lawrence Durrell “Papisa Joana” (Ed. Guerra e Paz, 2011); pps de Miroca; Hans Kuhner, “Dictionnaire des Papes”, (Editions Buchet-Chastel, Paris 1958); Dominique V.C. dos Santos, Camila M. Wagkerhage, “Tradução dos fragmentos da 1ª documentação referente à “papisa” Joana”, FURB, Universidade de Blumenau-2012; Wikipédia.   

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Porque não dissemos nada.



“Na primeira noite eles aproximam-se
E colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite já não se escondem,
Pisam as flores, matam o nosso cão.
E não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles,
entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua
e, conhecendo o nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada,
Já não podemos dizer nada.”

Maiakovski, poeta russo, “suicidado” após a revolução de Lenin.




sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Os três vinténs

                                 O amuleto dos três vinténs






No meio do meu arquivo descobri esta interessantíssima informação que traduz a secular cultura popular dos portugueses. A autoria é da “Associação de Paços de Silgueiros”. Reproduzo-a, com a devida vénia, tal como está escrita:



“Pela primeira vez, em Portugal, no reinado de D. Pedro II, se cunhou a moeda de três vinténs, de prata. E foi sendo cunhada até ao fim do reinado de D. Miguel que terminou em 1834 pela convenção de Évora-Monte. Nos reinados seguintes desapareceu esta simpática moedinha, embora continuassem em circulação as anteriormente cunhadas.

Esta moeda de prata, pequenina, tem, para os estudiosos da antropologia cultural, um encanto especial. É que a ela anda ligada uma tradição de séculos e uma expressão linguística corrente ainda hoje, embora com significado bem específico que todos conhecemos: aquela já não tem os três vinténs ou já lhe tiraram os três vinténs. Mas, vamos à história:

Antigamente, as mães que podiam ofertavam às suas filhas, às vezes logo no dia do nascimento, uma moedinha de prata, de três vinténs, ou seja de 60 réis a que faziam um furinho por onde passava um fio que permitia dependurá-la ao pescoço da menina. Funcionava como amuleto para salvaguardar a pureza e a virgindade daquela jovem que durante toda a vida o usava com orgulho.

Só com o casamento ela entregava a moedinha ao marido, ou este, orgulhoso, lha tirava do pescoço para a guardar religiosamente.

Podia então a sociedade afirmar com verdade que ela já não tinha os três vinténs porque os deu ou o marido lhos tirou. Estava, pois, casada, não era mais uma menina virgem.

A peça deste mês é uma dessas moedinhas, cunhada no reinado de D. José I, e em data não assinalada na cunhagem: três vinténs de prata.

A marca característica destas moedas, como se disse, era o furinho por onde passava o fio que havia de as suspender. Todavia, a peça que hoje vos trazemos tem dois furos, não alinhados, o que, muito provavelmente, significa ter servido duas vezes: à mãe e à filha, à avó e à neta...Talvez que uma importante superstição aconselhasse que o mesmo furo não devesse servir duas vezes.

Bonito a nosso ver é o estudo da cultura tradicional e popular dos portugueses; e esta peça e esta história e tudo o mais que gira à sua volta, parecem-nos encantadores.”
ASSOPS-Associação de Passos de Silgueiros* Rua Dr. José Assunção, 113.

SILGUEIROS  *www.assops.pt *    museudesilgueiros@gmail.com