“...e toda a gente sabe como / alteram todo o
sistema do universo, / zangam-nos contra
a vida, / e fazem espirrar até à metafísica. / Tenho o dia perdido cheio de me
assoar..”. F. Pessoa.
Por estas
bandas continua quase tudo na mesma com excepção da demissão de João Soares
como ministro da cultura e do General Carlos Jerónimo como Chefe do Estado-maior do
Exército. Estes dois acontecimentos mereceriam um comentário particular,
envolvendo lambadas e palmadas, mas poderia eventualmente exceder-se o politicamente
correcto na abordagem de questões sensíveis como a boa educação (que cada vez é
menos) e de alegadas descriminações ou violações constitucionais (invocadas sem critério e
ignorando importantes diferenças, como, por exemplo, as que distinguem uma sociedade
civil de uma instituição militar).
O novo
Presidente Marcelo tem feito tudo para demarcar-se dos seus antecessores, não só no estilo mas, sobretudo, na substância. Tem confirmado que é
inteligente, culto e que sendo politico não precisa desta para nada. Criou pelo jornalismo/comentário televisivo uma invulgar empatia que chega a entrar no "sacrosanto
santuário" do eleitorado do PC. No mínimo raro. Depois do
"CDSista" Lobo Xavier como Conselheiro de Estado, nomeou como chanceler das Ordens Militares o socialista Jaime Gama. Fez, em Mafra, um notável discurso
na cerimónia de apresentação de cumprimentos das Forças Armadas Portuguesas ao
seu Chefe Supremo e convidou Mario Draghi para falar sobre a situação
financeira na Europa no 1º Conselho de Estado da sua presidência, do passado dia 7 de Abril. Simplesmente brilhante. MRS quer e está de facto a conseguir marcar
uma relevante diferença com mandatos anteriores, nomeadamente com o do seu
antecessor. Não acredito que fique por aqui. Não deixará de surpreender.
Entretanto, aqui vai para distracção mais uma das historietas de que me lembro. Passou-se há mais de dez anos.
“A
Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161º
da Constituição, para valer como lei geral da República, o seguinte: ...é
atribuído um complemento especial (...) por cada ano de prestação de serviço
militar ou duodécimo (...) Os ex-combatentes
(...) devem requerer à CGA, aos centros distritais de solidariedade
social ou(...), até 31 de Outubro de 2002, a contagem do tempo de serviço
militar para efeitos de aposentação e ou reforma.” (Lei nº 9/2002 de 11 de Fevereiro).
Eram nove e picos da manhã quando entrei nas
modernas instalações da Caixa, ali na 5 de Outubro, naquele edifício com as cores e motivos do
genial arquitecto. Tirada a senha, li “A
0194, atendimento previsto às 13h30”. Ora até que enfim uma organização à
moda da Europa, depois se vê se funciona, não vale é a pena de aqui ficar.
E lá fui eu, ainda emocionado com aquela aparente
organização e modernices associadas. Quando regressei, dei-me conta de
pormenores que me impressionaram.
Na esquerda uma plateia em rampa suave garantia
confortáveis condições de espera, na direita uma fila de mais de dez balcões
devidamente numerados e, em local bem escolhido, um grande quadro electrónico.
Era intimidadora aquela plateia para quem está no
palco a ser atendido, mas era reconfortante o elevado número de balcões. Olhei
para o quadro e vi com contida alegria o nº 180. Iria ser rápido, não fosse ser
a hora do turno do almoço e estarem a funcionar só quatro balcões. E lá
apareceu o meu número.
Peguei na minha pasta e dirigi-me para o meu
balcão. Nele, vi um enorme e colorido cartaz com um bravo militar de camuflado
e cara engraxada que perguntava qualquer coisa do género “Já te inscreveste
para a contagem de tempo?“.
Levantei os olhos e vi-a. Era pequena, loirita, de
óculos à intelectual na ponta do arrebitado e constipado nariz. Sentia-a
furiosa, da ponta dos cabelos aos dedos dos pés. Não soube porquê, eu nem
sequer tinha ainda aberto a boca. Talvez pela hora.
Tentei amenizar o ambiente e disse, rindo
desajeitadamente, que vinha responder à interrogação do meu camarada do cartaz,
que era antigo combatente e que vinha pedir a contagem de tempo.
“Isso não é aqui”.
Como não é aqui, retorqui agitando a cópia da Lei.
“Já lhe disse (assoou-se) que não é aqui e não
insista”.
Essa é boa,
o artigo nono da Lei, que aqui lhe mostro, diz, preto no branco, que
devo apresentar requerimento na Caixa Geral de Aposentações que é, julgo, onde
estou. Olhe vê? “Quero lá saber do que aí está escrito, já lhe disse que não é
aqui“ (fungou).
Mas ó minha senhora a Lei foi aprovada na
Assembleia, foi promulgada pelo senhor Presidente da República e foi
referendada pelo senhor Primeiro-Ministro!
“Não me interessa (fungou) a Assembleia, o
Presidente e o Governo, não me interessa nada disso tudo e olhe, sabe que
mais?“ (fungou). Levantou-se de repente, espirrou, agarrou-me pela manga do
casaco, puxou-me para fora do balcão deixando-me, pobre de mim, frente a uma
temível plateia cheia de pensionistas e familiares, que o reboliço da nossa
conversa tinha transformado de cansada e distante em parte interessada,
surpresa e curiosa.
A voz estalou fanhosa mas em tom de comando:
“Se há mais alguém como este senhor e que está aí para
requerer contagem do tempo militar, fica já a saber que está a perder tempo
porque não é aqui, é no Estado-maior na avenida Ilha da Madeira”.
Dito isto virou as costas a todos, espirrou
novamente, entrou toda empertigada na sua “box” e deixou-me ali exposto a
dezenas de olhares que me seguiram inquisidoramente até à saída .
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