sábado, 9 de abril de 2016

O pensionista combatente



“...e toda a gente sabe como / alteram todo o sistema do universo, / zangam-nos  contra a vida, / e fazem espirrar até à metafísica. / Tenho o dia perdido cheio de me assoar..”.  F. Pessoa.

Por estas bandas continua quase tudo na mesma com excepção da demissão de João Soares como ministro da cultura e do General Carlos Jerónimo como Chefe do Estado-maior do Exército. Estes dois acontecimentos mereceriam um comentário particular, envolvendo lambadas e palmadas, mas poderia eventualmente exceder-se o politicamente correcto na abordagem de questões sensíveis como a boa educação (que cada vez é menos) e de alegadas descriminações ou violações constitucionais (invocadas sem critério e ignorando importantes diferenças, como, por exemplo, as que distinguem uma sociedade civil de uma instituição militar).
O novo Presidente Marcelo tem feito tudo para demarcar-se dos seus antecessores, não só no estilo mas, sobretudo, na substância. Tem confirmado que é inteligente, culto e que sendo politico não precisa desta para nada. Criou pelo jornalismo/comentário televisivo uma invulgar empatia que chega a entrar no "sacrosanto santuário" do eleitorado do PC. No mínimo raro. Depois do "CDSista" Lobo Xavier como Conselheiro de Estado, nomeou como chanceler das Ordens Militares o socialista Jaime Gama. Fez, em Mafra, um notável discurso na cerimónia de apresentação de cumprimentos das Forças Armadas Portuguesas ao seu Chefe Supremo e convidou Mario Draghi para falar sobre a situação financeira na Europa no 1º Conselho de Estado da sua presidência, do passado dia 7 de Abril. Simplesmente brilhante. MRS quer e está de facto a conseguir marcar uma relevante diferença com mandatos anteriores, nomeadamente com o do seu antecessor.
Não acredito que fique por aqui. Não deixará de surpreender. 
Entretanto, aqui vai para distracção mais uma das historietas de que me lembro. Passou-se há mais de dez anos.

“A  Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161º da Constituição, para valer como lei geral da República, o seguinte: ...é atribuído um complemento especial (...) por cada ano de prestação de serviço militar ou duodécimo (...) Os ex-combatentes  (...) devem requerer à CGA, aos centros distritais de solidariedade social ou(...), até 31 de Outubro de 2002, a contagem do tempo de serviço militar para efeitos de aposentação e ou reforma.” (Lei nº 9/2002 de 11 de Fevereiro).
Eram nove e picos da manhã quando entrei nas modernas instalações da Caixa, ali na 5 de Outubro,  naquele edifício com as cores e motivos do genial arquitecto. Tirada a senha, li  “A 0194, atendimento previsto às 13h30”. Ora até que enfim uma organização à moda da Europa, depois se vê se funciona, não vale é a pena de aqui ficar.
E lá fui eu, ainda emocionado com aquela aparente organização e modernices associadas. Quando regressei, dei-me conta de pormenores que me impressionaram.
Na esquerda uma plateia em rampa suave garantia confortáveis condições de espera, na direita uma fila de mais de dez balcões devidamente numerados e, em local bem escolhido, um grande quadro electrónico.
Era intimidadora aquela plateia para quem está no palco a ser atendido, mas era reconfortante o elevado número de balcões. Olhei para o quadro e vi com contida alegria o nº 180. Iria ser rápido, não fosse ser a hora do turno do almoço e estarem a funcionar só quatro balcões. E lá apareceu o meu número.
Peguei na minha pasta e dirigi-me para o meu balcão. Nele, vi um enorme e colorido cartaz com um bravo militar de camuflado e cara engraxada que perguntava qualquer coisa do género “Já te inscreveste para a contagem de tempo?“.
Levantei os olhos e vi-a. Era pequena, loirita, de óculos à intelectual na ponta do arrebitado e constipado nariz. Sentia-a furiosa, da ponta dos cabelos aos dedos dos pés. Não soube porquê, eu nem sequer tinha ainda aberto a boca. Talvez pela hora.
Tentei amenizar o ambiente e disse, rindo desajeitadamente, que vinha responder à interrogação do meu camarada do cartaz, que era antigo combatente e que vinha pedir a contagem de tempo.
“Isso não é aqui”.
Como não é aqui, retorqui agitando a cópia da Lei.
“Já lhe disse (assoou-se) que não é aqui e não insista”.
Essa é boa,  o artigo nono da Lei, que aqui lhe mostro, diz, preto no branco, que devo apresentar requerimento na Caixa Geral de Aposentações que é, julgo, onde estou. Olhe vê? “Quero lá saber do que aí está escrito, já lhe disse que não é aqui“ (fungou).
Mas ó minha senhora a Lei foi aprovada na Assembleia, foi promulgada pelo senhor Presidente da República e foi referendada pelo senhor Primeiro-Ministro!
“Não me interessa (fungou) a Assembleia, o Presidente e o Governo, não me interessa nada disso tudo e olhe, sabe que mais?“ (fungou). Levantou-se de repente, espirrou, agarrou-me pela manga do casaco, puxou-me para fora do balcão deixando-me, pobre de mim, frente a uma temível plateia cheia de pensionistas e familiares, que o reboliço da nossa conversa tinha transformado de cansada e distante em parte interessada, surpresa e curiosa. 

A voz estalou fanhosa mas em tom de comando:
“Se há mais alguém como este senhor e que está aí para requerer contagem do tempo militar, fica já a saber que está a perder tempo porque não é aqui, é no Estado-maior na avenida Ilha da Madeira”.
Dito isto virou as costas a todos, espirrou novamente, entrou toda empertigada na sua “box” e deixou-me ali exposto a dezenas de olhares que me seguiram inquisidoramente até à saída .

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