segunda-feira, 7 de março de 2016

Eu e os apanhados




Nada de relevante se passa por estas bandas, excepto as controvérsias sobre o Orçamento do Estado, a tomada de posse do novo Presidente da República, a escandalosa contratação da ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque pela empresa Whitestar que comprou os créditos malparados do Banif na sua altura sob tutela do ministério das finanças e, claro, o futebol. Estou a reestudar as ondas gravitacionais e se chegar a conclusões que a minha saudosa avó pudesse compreender, informarei. Até lá e como o lema deste "blog" é "quase nada de um pouco de tudo", aqui vai, para distracção, esta historieta.
                                                                                                                                                                                                     
Andei mais de quatro anos com uma artrose da anca, diagnosticada e diagnosticada por um querido amigo meu, reputado médico especialista na matéria.
Li tudo sobre a patologia, desde as enciclopédias aos anúncios, passando por artigos em livros e revistas da especialidade. Falei com todos, não esquecendo os fanáticos das medecinas alternativas. Tomei de tudo, desde o tutano de vaca (que rejeitei sem saudades logo que accionado o alerta da “bse”) até à infalivel, miraculosa e caríssima barbatana de tubarão, não tendo conseguido (na altura para meu desespero) experimentar um celenterado habitante dos mares do Japão considerado como poção miraculosa.

Ginastiquei e fui manipulado pelos mais famosos especialistas imigrados em terras lusitanas.
Ela foi uma polaca, ele foi um japonês, eu sei lá. Acabei nas brutas mãos de um catalão. Resultados? Dez elevado a menos seis…
Quando no metropolitano se começaram a levantar para me darem o lugar, quando comecei a levar comiseradas palmadinhas nas costas e, sobretudo, quando uma auto-medição da minha coxa revelou uma atrofia de três centímetros, só então decidi entregar-me sem reticências ou reservas nas mãos da medicina ocidental.
Consultei dois cirurgiões. Um de gabinete luxuoso, secretária loira de modos distantes, agenda electrónica, computadores de bolso e de mesa, óculos de aros de “design” exclusivo, lacinho à gato e falas atenciosomodernas. Outro, modesto e afável nas pobres instalações de um hospital público. Foi este que eu escolhi para meu talhante.
Escutei com muita atenção as respostas às dúvidas e certezas do meu “saber” de miserável engenheiro.
Que não, que as minhas reservas a uma futura “revisão“ (fiquei a saber que nós humanos somos, em certos casos, para a medicina como os carros) não tinham razão de ser, uma vez que as técnicas da artroplastia da anca tinham evoluído muito nos últimos anos.
Não não, não me iria ser cortada a cabeça do fémur. Este, iria ser simplesmente “lapidado” e sobre a resultante jóia seria cravada uma esfera de aço com um coeficiente de atrito incrivelmente baixo. 
Os termos “esfera“ e “atrito“ foram (é hoje a minha convicção) decisivos na minha aquiescência (o espírito de engenheiro tem coisas destas).
Depois, ficar na lista das primeiras três mil operações europeias do género e a segunda cá da terra (segundo ele), buliu com a minha vaidade que naquela ocasião se revelou angustiada e sem que eu a pudesse ignorar. Mergulhei assim na fatalidade cirúrgica: decidido mas contrariado.
Estive várias semanas “de molho”, dependente de tudo e de todos.
Media diária e obsessivamente o perimetro da minha coxa esquerda transformada num trambolho de tronco, seguia hiperdisciplinada e cronometricamente as instruções para os exercícios diários de fisioterapia, inventava processos para sair da cama, tomar banho, pôr as meias.
Depois do que passei, confesso que quase teria preferido ficar como nasci e não fazer parte da moderna mestiçagem homem-máquina, orgulho da ciência médica e canhestra forma da inatingivel imortalidade. Quando, ao fim de intermináveis semanas recuperei a minha independência, ela era condicionada por um par de canadianas. Tinha chegado a altura de, autonomamente, arriscar-me a operações mais complicadas como, por exemplo, ir sózinho às compras. E lá fui eu.
Despreocupado fui enchendo o carro de compras.
Chegado ao fim verifiquei pelo volume que não é em vão que se está tanto tempo fora de casa e, confesso, só então me apercebi de óbvias e concretas limitações. Burrices.
Cá fora e a uma consideravel distância do meu carro, estacionado na rua junto ao passeio  com o beneplácito de uma senhora polícia para com o “tadinho“, colocou-se o problema do transbordo. Pensei que se a polícia se tinha mostrado tão compreensiva, certamente que o anónimo e sensivel cidadão também e, de facto, ele apareceu na forma de um simpático jovem que vinha calmamente pelo passeio na minha direcção.
A ele me dirigi quase suplicante, gesticulando com as canadianas apontando o meu carro e pedindo o favor de me ajudar a descarregar as compras.
A imediata disponibilidade inicial foi repentinamente substituida por gargalhadas cúmplices e por uma firme mas divertida recusa:
“Querias? Querias? Tu e os apanhados da TV! “Não, não...”  e desapareceu a rir.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário