O Jacarandá
“ Na verdade, que vida
seria mais triste e aborrecida do que a sua, se possuíssem um grão de bom
senso...” F. Pessoa
Foram tempos gloriosos aqueles anos oitenta. Entre outras modas e “ slogans ” havia um que
eu considerava delicioso. Era
o “colabore com a Polícia“ , largamente publicitado nos meios
de
comunicação social e coisa em que cuja eficácea ou razão de ser eu não
acreditava. Regressado há meia dúzia de anos de
África, ainda sentia o peso dos galões nos ombros e
a atmosfera revolucionária,
embora já em fase de surdina, assentava que nem uma luva ao
meu espírito
provocador. Tudo era pretexto para eu telefonar e pedir uma ligação ao oficial
de
dia na PSP. Barulho de noite, zaragatas, o trânsito, incompetências
diversas. Ele já me
conhecia e uma inexplicável cumplicidade e cordialidade
marcava as nossas relações de
antigos combatentes, que eu tinha sublinhado com
sucesso desde o nosso primeiro contacto.
Isso e, suprema hipocrisia, a minha
inabalável vontade de, como exemplar cidadão,
responder ao lancinante apelo
diariamente lançado nos meios de comunicação de colaborar
com as forças da
ordem.
”Então senhor engenheiro, como está...em que lhe posso ser útil?”. “Olhe,
meu caro amigo,
nada de especial só que eu hoje presenciei isto e aquilo o que,
como deve calcular, é
insustentável e eu quero colaborar com a
polícia”...”Esteja descansado que eu providencio”.
Providenciava e só a
Providência podia providenciar uma escala de oficiais-de-dia
perfeitamente
ajustada aos meus erráticos contactos com a polícia. É um mistério que ainda
hoje pode manchar a veracidade deste relato.
Todas as minhas reclamações eram menores e só eram explicáveis por um
espírito retorcido
como o meu. Claro que houve a excepção do ordinário que, ao
lado da sua ridícula motoreta
nívea, num engarrafamento directamente causado
pela sua incúria e incompetência, teve o
descaramento de me mandar seguir com “
essa m... de carro “. Não pude resistir e o meu
camarada concordou comigo que
um espectacular carro-novo-em- folha-azul-pavão
metalizado, era lindíssimo e
nada que pudesse ser confundido com uma m.... “O senhor
engenheiro não tirou o
nome do agente?...então vai ser dificil...”.
Um belíssimo dia de Primavera fui almoçar com um colega. Íamos sempre ao
mesmo local
passeando por ruas que têm nomes poéticos... Florbela,
Rosália...ruas povoadas de
jacarandás verdes e azul-lilás. No começo de uma
delas havia um com uma ramada comprida
e demasiado baixa que nos obrigava, ao
passar, a encolher e desviar as cabeças. Nós já
sabíamos, mas que aquilo era
perigoso para um distraido, era.
“Vais ver que um dia há um gajo que
bate aqui com os cornos“. E aconteceu.
Passámos, desviámos as cabeças e após meia dúzia de passos ouvimos o
barulho de choque-e-queda, seguido de um tilintar de vidros e de ais. Ele
estava estatelado no passeio...
balbuciando
“onde-estou-ai-quèquemaconteceu-ondeéquestou-ai...”, com os óculos partidos
ao
lado e com um respeitável lenho na cabeça. Precipitámo-nos e ouvimos lá de
cima, vinda
de um segundo andar, uma vózinha desafinada dizendo “eu bem dizia
este mês já é o
segundo...”.
Ajudámo-lo a levantar, apanhámos o que restava dos óculos, sacudimos o pó
do seu casaco
e achámos que a situação era merecedora de uma participação ás
autoridades. Nem de
propósito, aproximavam-se dois guardas lado a lado.
“Senhor guarda agradecia que tomasse nota desta ocorrência...”. “Qual
ocorrência ?”...”Qual ocorrência essa é boa”, e apontava para a vítima...”Esta
ramada é perigosíssima e alguém
tem que tomar medidas”... “Não temos nada a ver
com isso, é assunto da polícia municipal...” e seguiram em frente, sem mais.
Eu de raiva nem almocei e mal cheguei ao escritório liguei para o meu
camarada de armas.
“Boa tarde senhor engenheiro, como está?”...”Mal, nem
almocei” e contei-lhe o acontecimento
e o inaceitável comportamento dos
guardas. “O senhor engenheiro por acaso não tomou nota
dos nomes”...”Tomei,
tomei”, respondi triunfante...”são fulano e sicrano da esquadra do
Campo
Grande”. Seguiu-se um desconsolado silêncio. “Desta vez vai-lhe ser fácil
corrigir a
situação”, lembrei eu maldosamente...”Sim,sim, sim...esteja
descansado, vou imediatamente
tomar as medidas necessárias”. “Muito obrigado e
a continuação de um bom dia para o meu
amigo.”
Passados poucos dias voltámos a passar pela rua. Do jacarandá nem sinal, tinha sido arrancado, serrado. Não foi só a pernada, foi todo. Para grandes males grandes remédios devem ter pensado. Senti-me culpado daquele assassinato e a vergonha impediu-me, desde esse dia, de continuar a telefonar para o meu camarada e desconhecido amigo oficial - de - dia na PSP.
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