segunda-feira, 22 de abril de 2013

O bridge e as bananeiras

                   Recordações da guerra - Moçambique (1970-1972), Mueda

 “ ...Assim, foi perturbada a simplicidade destas necessidades orgânicas, assim foram        deturpadas todas as funções simples...“  F. Pessoa

Lembro-me daquilo.
Daquelas casernas alinhadas no extremo da enorme praça do Destacamento de Engenharia. Praça alagada e enlameada na época das chuvas.Tropa comandada na altura só por alferes, aguardando a nomeação de um capitão. Era o mais antigo e desse estatuto não me livrava, mas o comando era colegial e muito democrático. Lembro-me da minha obsessão pela disciplina, pela alimentação e pela limpeza.Tínhamos construído casernas, casas de banho e um amplo espaço para as cozinhas. Já não havia poças com água estagnada e uns bidons, por mim mandados caiar com faixas brancas e distribuídos pela parada, asseguravam depósitos para o lixo.
Duas fiadas de recém-plantadas bananeiras decoravam um pífio canteiro em frente da nossa e muito modesta "messe". Era uma mancha verde no meio daquele castanho.
Mas a tropa não ligava. Eram constantes as guerras para que não se cozinhasse nas casernas, para que se utilizasse as casas de banho, para que não se deitasse lixo para a parada...Em vão.
Um dia perdi a paciência, “ saltou-me a tampa “ com a visão, no luscofusco do princípio da noite, de um soldado a aliviar-se nas bananeiras, nas bananeiras que eu tinha mandado plantar! 
Mandei chamar o primeiro sargento e disse-lhe “ avise a malta que o primeiro que fôr apanhado a mijar fora das casas de banho f...-o, leva uma porrada que nunca mais se esquece. Leva a porrada e, depois, vai de coluna para Nangade. Não vai pelo ar, vai na coluna...e com bilhete de ida-e-volta ”. Era horrivel, era uma temivel perspectiva. Não a porrada, mais reforço menos reforço a malta estava-se nas tintas, mas ir na coluna era, de facto, muito muito mau. 
“Olhe, e para que não haja dúvidas, para que tudo fique claro, você informa a companhia amanhã de manhã na formatura “. “ Sim, meu alferes “. E assim foi.
No dia seguinte, na parada e antes da ordem de dispersar, houve discurso. Que fossem todos
asseados e que urinassem nos sítios apropriados e que “o primeiro que seja apanhado a
mijar nas bananeiras do nosso alferes, leva uma porrada e vai a seguir  despachado na
próxima coluna para Nangade, com bilhete de ida-e-volta“.
Terminou, olhou para mim e eu assenti.
Mandou “ firme, sentido “ e pediu-me licença para a ordem de dispersar. Achei que o recado
tinha sido dado e bem compreendido.
A noite em Mueda estava calma. Na engenharia jogava-se bridge. Nós, os regressados do mato, com os nossos amigos do hospital militar, da aviação, dos paraquedistas e de outras armas que nos davam protecção e connosco partilhavam as agruras do mato e, em muito maior grau, os seus perigos. Por vezes apareciam altos comandos.  
Um pau. Passo. Uma copa. Passo. Três copas. Passo. Quatro copas. “Partida. Não pode perder isto“. Levantou-se e foi lá para fora desentorpecer as pernas. O meu parceiro era o brigadeiro comandante das operações no sector. Oficial oriundo da arma de engenharia tinha por nós especial carinho. Educadíssimo fazia os possíveis para amaciar a diferença de patentes em benefício das afinidades profissionais. Para mim, no entanto, não deixava de ser o que era e tê-lo como parceiro obrigava-me a uma redobrada atenção e a não ser diletante nas vozes e no cartear.
Estava tudo a correr bem e até era possivel cumprir cinco copas, quando, de repente, ouviu-se lá fora a voz alterada do primeiro sargento: “Ah meu grande porcalhão que te apanhei a mijar nas bananeiras do nosso alferes...então não ouviste o que eu disse na formatura ? ... vais levar uma porrada...vira-te para que eu te veja a cara meu porcalhão...”. Seguiu-se um silêncio mortal.
Olhámos uns para os outros e o mesmo pensamento atravessou-nos: o gajo para não ser identificado deu-lhe uma paulada e está a pirar-se! Largámos as cartas, saltámos das cadeiras e corremos todos para a porta.
O nosso primeiro estava em sentido e balbuciava: “Ó meu brigadeiro desculpe...desculpe-me, é noite e sem luz não reconheci...Ó meu brigadeiro desculpe eram as ordens do nosso
alferes...”.
De noite todos os gatos são pardos, sobretudo quando de camuflado.

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