“ Isto de sensações só
vale a pena se a gente se não põe a olhar para elas. “
F.
Pessoa
Tenho poucos mas bons amigos e ainda menos, se isso é possivel, amigas. Acompanham-me, melhor ou pior, nos bons momentos da minha vida. Nos maus momentos as minhas amigas aparecem sempre sem eu assinalar nada, pelo que gosto cada vez mais delas.
Tenho poucos mas bons amigos e ainda menos, se isso é possivel, amigas. Acompanham-me, melhor ou pior, nos bons momentos da minha vida. Nos maus momentos as minhas amigas aparecem sempre sem eu assinalar nada, pelo que gosto cada vez mais delas.
Há uns anos ia regularmente ao cinema com uma
amiga que, ainda hoje, ocupa secreta, discreta e
inocentemente um lugar especial no meu
coração.
A escolha do filme era sempre controversa. Eu
acreditava na crítica, ela no título e na história.
Geralmente não me apetecia ir, preferindo,
estupidamente, reflectir naquilo que julgava serem as
minhas irreparáveis desgraças. Imbecibilidades
que arruinam um tempo que já não volta.
Ela, na sua tarefa missionária, puxava por mim
e conseguia arrastar-me. Vi, assim, e como
consequência directa da caridade e, quero
crer, de um sólido afecto, muitos filmes em muitos
cinemas.
E foi como sempre. “Então o que vamos ver?”
Nada. “Nada não, porque a mim apetece-me e não me vais fazer essa desfeita”. Mas não há nada que
valha a pena. “Ai há, há...vê lá nas tuas críticas e
depois telefona-me, não te esqueças, terça,
quer queiras quer não, vamos ao cinema porque a mim
apetece--me.“ Pois sim , murmurava eu.
Folheei o jornal, olhei para as estrelas e lá
estava ele acumulando tudo. O realizador, os actores, as críticas laudatórias. Só o nome, que me
deveria ter dito alguma coisa, me escapou na análise.
“O quê ? Para onde é que tu me queres levar,
estás bom da cabeça?” E ria-se.
Eu, encavacado, eu que infelizmente nunca tive
jeito para “levar“ as mulheres para lado nenhum e
muito menos para a “desgraça“, eu quase que
afinei. É excelente, protestava eu, só não sei se
gostas de policiais.
E ela ria-se e dizia que um filme com aquele
nome só podia ser pornográfico. “Noites escaldantes,
ouve lá, já pensaste?”
E eu, só naquele
momento pensei naquela hipótese. Mas não dei ao flanco, fui intransigente, como
compete a quem pensa que manda, e responsabilizei-me pela candura do
espectáculo.
E na terça lá fomos. O filme começou e passados minutos já eu me
contorcia desconfortável na cadeira. A cada cena um pouco mais ousada e havia
muitas - que para mim, pudico imbecil, podia ser um
prolongado e sensual beijo ou a nudez enlaçada
na cama, enfim o pão nosso de cada dia de hoje - o meu íntimo reagia num constante cruzar e descruzar
de pernas, num envergonhado pousar de cabeça na mão, num descontrolado esfregar do
ombro, numa tímida e forçada tosse.
E o facto de levar cotoveladas e de ouvir um
riso irónico, franco e abafado, só piorava as coisas.
Julgo que com a atrapalhação perdi metade
daquele que é e será sempre um esplêndido filme.
Chegado ao intervalo, ainda as luzes não
estavam completamente acesas, não aguentei, queria que
um buraco me engolisse, sentia uma necessidade
imperiosa de desaparecer, de fugir.
Levantei-me bruscamente como que impulsionado
por uma mola e lancei-me para o exterior.
Vi a placa de sanitários, abri, entrei e
refugiei-me no interior de uma espécie de box. Deveria ter
desconfiado, mas dei a novidade por conta das
modernices próprias de um arquitectolas da nova vaga.
E, de repente, provavelmente logo a seguir ao
verdadeiro início do intervalo lá fora, ouvi um tic tic tic e, olhando para o espaço aberto por debaixo da
porta, vi, para meu terror e pânico, desfilar pernas
nuas de saltos altos.
Não havia dúvida, estava na casa de banho das
senhoras.
Dei um salto e empoleirei-me na sanita onde
fiquei silencioso, ouvindo sem o querer os ruídos que
soavam, abafados é certo mas íntimos, à
esquerda e à direita e na angustiante espera pelo salvador
sinal sonoro de fim de intervalo.
Apanhei um valente susto mas que foi remédio
santo: vi o resto do filme estranhamente repousado,
como um malandro sem vergonha que vivera a tão
desejada total igualdade entre os sexos.
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