quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O filme



 “ Isto de sensações só vale a pena se a gente se não põe a olhar para elas. “
  F. Pessoa 
Tenho poucos mas bons amigos e ainda menos, se isso é possivel, amigas. Acompanham-me, melhor ou pior, nos bons momentos da minha vida. Nos maus momentos as minhas amigas aparecem sempre sem eu assinalar nada, pelo que gosto cada vez mais delas.  
Há uns anos ia regularmente ao cinema com uma amiga que, ainda hoje, ocupa secreta, discreta e inocentemente um lugar especial no meu coração. A escolha do filme era sempre controversa. Eu acreditava na crítica, ela no título e na história. Geralmente não me apetecia ir, preferindo, estupidamente, reflectir naquilo que julgava serem as minhas irreparáveis desgraças. Imbecibilidades que arruinam um tempo que já não volta. Ela, na sua tarefa missionária, puxava por mim e conseguia arrastar-me. Vi, assim, e como consequência directa da caridade e, quero crer, de um sólido afecto, muitos filmes em muitos cinemas.  
E foi como sempre. “Então o que vamos ver?” Nada. “Nada não, porque a mim apetece-me e não me vais fazer essa desfeita”. Mas não há nada que valha a pena. “Ai há, há...vê lá nas tuas críticas e depois telefona-me, não te esqueças, terça, quer queiras quer não, vamos ao cinema porque a mim apetece--me.“ Pois sim , murmurava eu.               
            
Folheei o jornal, olhei para as estrelas e lá estava ele acumulando tudo. O realizador, os actores, as críticas laudatórias. Só o nome, que me deveria ter dito alguma coisa, me escapou na análise. 
“O quê ? Para onde é que tu me queres levar, estás bom da cabeça?” E ria-se. Eu, encavacado, eu que infelizmente nunca tive jeito para “levar“ as mulheres para lado nenhum e muito menos para a “desgraça“, eu quase que afinei. É excelente, protestava eu, só não sei se gostas de policiais. E ela ria-se e dizia que um filme com aquele nome só podia ser pornográfico. “Noites escaldantes, ouve lá, já pensaste?” E eu, só naquele momento pensei naquela hipótese. Mas não dei ao flanco, fui intransigente, como compete a quem pensa que manda, e responsabilizei-me pela candura do espectáculo.
E na terça lá fomos. O filme começou e passados minutos já eu me contorcia desconfortável na cadeira. A cada cena um pouco mais ousada e havia muitas - que para mim, pudico imbecil, podia ser um prolongado e sensual beijo ou a nudez enlaçada na cama, enfim o pão nosso de cada dia de hoje - o meu íntimo reagia num constante cruzar e descruzar de pernas, num envergonhado pousar de cabeça na mão, num descontrolado esfregar do ombro, numa tímida e forçada tosse. E o facto de levar cotoveladas e de ouvir um riso irónico, franco e abafado, só piorava as coisas. Julgo que com a atrapalhação perdi metade daquele que é e será sempre um esplêndido filme.  
Chegado ao intervalo, ainda as luzes não estavam completamente acesas, não aguentei, queria que um buraco me engolisse, sentia uma necessidade imperiosa de desaparecer, de fugir. Levantei-me bruscamente como que impulsionado por uma mola e lancei-me para o exterior. Vi a placa de sanitários, abri, entrei e refugiei-me no interior de uma espécie de box. Deveria ter desconfiado, mas dei a novidade por conta das modernices próprias de um arquitectolas da nova vaga.    
                         

E, de repente, provavelmente logo a seguir ao verdadeiro início do intervalo lá fora, ouvi um tic tic tic e, olhando para o espaço aberto por debaixo da porta, vi, para meu terror e pânico, desfilar pernas nuas de saltos altos. Não havia dúvida, estava na casa de banho das senhoras. Dei um salto e empoleirei-me na sanita onde fiquei silencioso, ouvindo sem o querer os ruídos que soavam, abafados é certo mas íntimos, à esquerda e à direita e na angustiante espera pelo salvador sinal sonoro de fim de intervalo.  
Apanhei um valente susto mas que foi remédio santo: vi o resto do filme estranhamente repousado, como um malandro sem vergonha que vivera a tão desejada total igualdade entre os sexos.

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