quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A intelectualidade no vocabulário de hoje


           
Nos EUA decidiu-se há anos eliminar formalmente o racismo por via gramatical. Apenas formalmente.
De facto, é minha convicção que, no mais fundo do mais aberto espírito norteamericano, haverá sempre, na sua maioria, o “superior” white anglo-saxon versus os outros: os latinos e os negros. Apenas por conveniência política e hipocrisia social o negro passou a ser designado por afroamericano. Não são dificéis de encontrar provas disto nos filmes e na imprensa do lado de lá do Atlântico e não se deve tomar a nuvem do Tea Party por Juno.
A eleição de Obama é uma excepção que, confesso, me encantou e surpreendeu mas que certamente irritou os conservadores de lá e de cá. Sim, de cá. Ainda esta semana ouvi na TV um conceituado economista, ex ministro cavaquista classificá-lo como sendo o pior presidente dos EU dos últimos anos. E a besta do Bush filho? Não conta? E as mentiras do Bush pai (“read my lips”) esquecem-se? E o escândalo WaterGate nixoniano? Nunca aconteceu? Claro que não para o génio de cá. Eram todos republicanos... E não houve ninguém, do entrevistador ao “painel”, que confrontasse aquela beleza (a quem eu acho piada) com essa sua afirmação própria da ligeireza raivosa.
Claro que o mandato de Obama está marcado por falhanços, desde Guantanamo a outra promessas. E por cá? Alguém comenta as desgraçadas políticas de Cavaco que destruiram o nosso aparelho produtivo? A vergonhosa atitude de Durão Barroso na questão do Iraque (à qual deve o seu actual estatuto)? A falhada governação de Santana Lopes? As mentiras eleitorais de Passos Coelho? Ninguém. São todos de direita (hoje)... A nuvem do esquecimento envolve comentadores políticos e a maioria dos jornalistas.
Pobre Portugal entregue aos bichos governamentais, parlamentares e sindicais. Tudo na mesma panela, tudo à manjedoura do Estado invocando os superiores interesses da Nação.
Mas voltando à nova semântica que nos avassala todos os dias. Julgo que uma  ânsia de demarcação do passado  levou a  democracia a introduzir uma “revolução  vocabulária” inútil e que por vezes raia a imbecilidade. Revolução essa que se quer politica ou socialmente correcta por conceder ao vocábulo transformado uma aura de superioridade ou pretender ser intelectualmente brilhante pela utilização de expressões rebuscadas ou não compreensíveis pelo vulgo.
Como exemplo flagrante do primeiro caso, já não existem para os trabalhos de uma casa ou de uma empresa “criadas” ou “mulheres-a-dias” ou nem mesmo “auxiliares de limpeza” mas sim “empregadas” ou “assistentes técnicas”,  os  “contínuos” passaram a ser designados  nos estabelecimentos de ensino por “auxiliares de educação educativa” e nos escritórios as “secretárias” foram promovidas a “assistentes”. Os drogados transformaram-se em "toxicodependentes".
Como vocábulos próprios da intelectualidade, tem-se, por exemplo, a palavra abortar hoje repudiada como tal (parir antes do tempo da gestação) passando o assunto a ser discutido como "interrupção voluntária da gravidez". Os gangues vandalizadores e, não raras vezes mortíferos, são bondosamente apelidados de "grupos de jovens desenraizados, não integrados”. O “analfabetismo” desapareceu cedendo o passo à "iliteracia" (de facto são termos que designam realidades diferentes mas não foi essa a razão da substituição). Uma raínha do pimba chorosa deveria alterar a letra da sua cantigueta de “sou mãe solteira” para “sou de família monoparental” ou coisa do género. As crianças que serão para nossa desgraça os “homens de amanhã” são insuportáveis e incomodam pelos seus gritos, atitudes e exigências os que as rodeiam mas não são “mal educadas”, têm simplesmente um "comportamento disfuncional hiperactivo” e em vez de um par de estalos são apaparicadas pelos pais com a condescendência carinhosa de alguns adultos. Para sossego e satisfação da maioria de "encarregados de educação", foi eliminado do vocabulário escolar a palavra “cábula”, o qual, no limite não é mais do que um adjectivo significando "aluno de desenvolvimento instável", o qual,  longe de merecer crítica ou castigo (nunca!), é alvo de condescendente compreensão e apoio por parte dos pais que, frequentemente criticam de mão na anca os professores quando não chegam ao ponto de os ameaçar ou de lhes bater.
Ainda há cegos, infelizmente. Mas como a palavra foi considerada desagradável e até aviltante, quem não vê é considerado "invisual" (o termo é gramaticalmente impróprio, como impróprio seria chamar inauditivos aos surdos, mas é o "socialmente correcto").
A intelectualidade da nossa praça para se dar ares, desboca-se em "implementações", "posturas pró-activas", "políticas fracturantes", “sinergias”, “valências”, “análises contextuais” e outras barbaridades.
Assim linguajamos o português, vagueando entre uma “correcção social ou política” e um novo-riquismo linguístico. Hoje, o vocábulo desempenha o papel da farda dos tempos muito antigos: dá a importância que falta a quem o utiliza.
À margem desta revolução  ficaram as putas. Desculpem,  as “profissionais do sexo”. Elas, agora, são ainda as que melhor cultivam a língua. Não há "socialmente correcto" que lhes dobre o modo de expressão ou lhes imponha a terminologia nova. Os amantes do idioma pátrio (e não só, claro) se o quiserem ouvir no pleno da sua vernaculidade, que se dirijam a uma casa de putas, agora designadas pudicamente por “casas de alterne”. Aí sim, o português mantém a sua verdade. “Disfunção eréctil” o que é isso? Poderia traduzir para um português a todos compreensível...
A propósito, o que dizer da “obra” de  escultura que se encontra no alto do parque Eduardo VII em Lisboa? “Pirilau” (não vou mais além entrando no domínio da crueza) ou “homenagem à virilidade” dos capitães?
Fico-me por aqui com esta belíssima escultura de homenagem ao 25 de Abril (carago!). 

Ainda hoje, passados quase 40 anos, não percebo porque é que foi destruído um simples pedestal sem qualquer estilo (sobre o qual deveria estar a estátua de D. Nuno Álvares Pereira, actualmente em frente ao mosteiro da Batalha) e foram mantidas duas colunas com coroas fascizantes. Facilidade versus dificuldade? Diletantismo intelectual versus arte?

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