No
metro
“...O problema é mais estético do que ético, filosófico, sexual,
psicológico ou político,
... porque tudo o que importa é, ao fim e ao cabo, estético...”
M.Vargas Llosa
Estive quase dois anos em Paris. As cidades são como os humanos, só se conhecem verdadeiramente bem na intimidade e nunca de modo salteado ou ao longe.
Lisboa, esta cidade de que tanto gosto, com a
sua luz única e espantosa, é lindíssima vista ao longe. Paris é uma cidade linda, de
perto ou ao longe, desde a Concorde
até à Défense, de ocidente no Bois de Boulogne
a nascente no seu único relevo da Bûte de
Montmartre.
Mas das suas gentes guardo
recordações pouco lisonjeiras.
Os parisiences e a caca dos seus cães são
execráveis. A sua xenofobia só é igualada pela sua falta
de simpatia e de polidez.
É certo que em dez deles só três são franceses
de origem, como na altura me garantiram almas
caridosas e sensiveis aos agoniantes remoinhos
que me invadiam. Remoínhos vindos daquelas
realidades que, diariamente, esbarravam
comigo, que constantemente assaltavam o meu sangue
meio francês e a minha mente e, porque não
confessá-lo, a minha alma francesa.
De dia, aturava o orgulho, a presunção e a
altivez dos professores da minha escola. Tudo inteligências de primeira água, com enorme
antipatia pelos alemães e... confrangedora submissão
aos ingleses, quem diria ? Mas era assim e,
rapidamente, para me livrar da minha auréola de
“métèque“, substituí, para efeitos
escolares, o meu impecável francês pelo inglês. Os resultados
foram imediatos e, ainda hoje em dia,
interrogo-me se a alta consideração de que beneficiei no fim do
curso não terá sido mais um resultado
colateral daquela estratégia.
Nos tempos livres, gastos a conhecer a cidade,
cruzava-me com eles ordinarotes, com elas
provocantes e com os seus cães cujos dejectos
decoravam os passeios.
Era assim à superfície e era assim no
eficientíssimo metro. Nas horas de ponta aquilo era insuportável mas
permitia corrigir o tiro: elas não eram assim tão
apetitosas.
De noite os corredores e carruagens desertas
inspiravam um certo receio e, por vezes, curiosidade
pela fauna na qual se cruzavam, com grosseiros
e boas, músicos, "clochards", e menos-boas.
Mal recebido pela minha família de sangue,
tive a felicidade de conviver com tios por afinidade.
O meu apartamento era no quinzième perto da
Place Balard, o deles no douzième, junto à Avenue
Daumesnil. Para quem não conhece a grande
cidade, estávamos ambos a Sul, mas em extremos
opostos. Era uma distância dos diabos, de
metropolitano era quase uma hora de trajecto.
Eu adorava lá ir jantar, mesmo que à ida fosse
misturado com aquela detestável multidão e no
regresso, a horas tardias, com a estranha
sensação de que tudo aquilo estava a funcionar só para
mim.
Uma noite, bem passada como sempre, entrei na
carruagem e verifiquei que não estava sózinho,
como era habitual. Um parzinho estava todo
enroscado uns dois bancos mais à frente. Para não variar, ele grosseiro, ela muito provocante.
A principio era tudo calmo, em silêncio com
alguns risinhos, mas logo que a corneta tocou,
que as
portas se fecharam e que a carruagem
estremeceu com o arranque, começou o espectáculo o qual,
dada a minha localização, não podia felizmente
ignorar. Julgo, inclusivamente, que após ela ter
revirado os olhos (e assim continuaram com
breves pausas ao longo de todo um trajecto com mais
de vinte estações) perdi a vergonha e olhei-os
ostensivamente, à francesa.
Os corpos misturavam-se numa sensual e
selvagem dança. Naquele erótico e animado quadro ela
manejava com imaginação e arte uma paleta de
língua, dentes, braços, mãos, dedos, pernas, coxas,
ventre. Enrolava-se lascivamente nele, com
impaciência, e tanto estava de lado, como por cima,
como por debaixo dele, procurando avidamente a
sua boca e quando a encontrava nela mergulhava
violentamente e, então, a sua língua
participava numa sôfrega sucessão de desvairados beijos e de
quase raivosas, violentas e libidinosas
mordedelas, enquanto as suas mãos percorriam, impaciente e atabalhoadamente, as redondezas do torço, do
ventre, das coxas.
Ele era quase inerte, como um boneco insuflável.
Ela, olhando para mim, resolveu, suponho,
armar-se em esperta e tornar hermético o espectáculo.
Começou a linguajar português! Para o meu
deliciado espanto as frases estalaram cruas, e muito adequadas a cada posição, a cada fantasia bem
descrita (quem,onde, como) sabiamente
enquadradas pelas circunstâncias “
etceteraetal “ e acondimentadas por vernáculos e apropriados
insultos, muito apaixonados mas
sistematicamente centrados numa aparente insatisfação com o
funcionamento do “cabrão de francês“ .
Eu estava como nunca tinha estado e passei
quase uma hora de espectáculo originalíssimo e em
exclusivo.
A fogosidade da moça e os seus insultos ao
cabrão do francês comoveram-me e, chegada a minha
estação, não resisti.
Aproximei-me, pedi licença e olhando-a bem
despedi-me:
Sem comentários:
Enviar um comentário