sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O boneco insuflável



                                                         No metro

         “...O problema é mais estético do que ético, filosófico, sexual, psicológico ou político,

          ... porque tudo o que importa é, ao fim e ao cabo, estético...” M.Vargas Llosa



Estive quase dois anos em Paris. As cidades são como os humanos, só se conhecem verdadeiramente bem na intimidade e nunca de modo salteado ou ao longe.
Lisboa, esta cidade de que tanto gosto, com a sua luz única e espantosa, é lindíssima vista ao longe. Paris é uma cidade linda, de perto ou ao longe, desde a Concorde até à Défense, de ocidente no Bois de Boulogne a nascente no seu único relevo da Bûte de Montmartre. 
Mas das suas gentes guardo recordações pouco lisonjeiras. Os parisiences e a caca dos seus cães são execráveis. A sua xenofobia só é igualada pela sua falta de simpatia e de polidez. É certo que em dez deles só três são franceses de origem, como na altura me garantiram almas caridosas e sensiveis aos agoniantes remoinhos que me invadiam. Remoínhos vindos daquelas realidades que, diariamente, esbarravam comigo, que constantemente assaltavam o meu sangue meio francês e a minha mente e, porque não confessá-lo, a minha alma francesa.
De dia, aturava o orgulho, a presunção e a altivez dos professores da minha escola. Tudo inteligências de primeira água, com enorme antipatia pelos alemães e... confrangedora submissão aos ingleses, quem diria ? Mas era assim e, rapidamente, para me livrar da minha auréola de “métèque“, substituí, para efeitos escolares, o meu impecável francês pelo inglês. Os resultados foram imediatos e, ainda hoje em dia, interrogo-me se a alta consideração de que beneficiei no fim do curso não terá sido mais um resultado colateral daquela estratégia.
Nos tempos livres, gastos a conhecer a cidade, cruzava-me com eles ordinarotes, com elas provocantes e com os seus cães cujos dejectos decoravam os passeios.
Era assim à superfície e era assim no eficientíssimo metro. Nas horas de ponta aquilo era insuportável mas permitia corrigir o tiro: elas não eram assim tão apetitosas.
De noite os corredores e carruagens desertas inspiravam um certo receio e, por vezes, curiosidade pela fauna na qual se cruzavam, com grosseiros e boas, músicos, "clochards", e menos-boas.
Mal recebido pela minha família de sangue, tive a felicidade de conviver com tios por afinidade.
O meu apartamento era no quinzième perto da Place Balard, o deles no douzième, junto à Avenue Daumesnil. Para quem não conhece a grande cidade, estávamos ambos a Sul, mas em extremos opostos. Era uma distância dos diabos, de metropolitano era quase uma hora de trajecto. Eu adorava lá ir jantar, mesmo que à ida fosse misturado com aquela detestável multidão e no regresso, a horas tardias, com a estranha sensação de que tudo aquilo estava a funcionar só para mim. 
Uma noite, bem passada como sempre, entrei na carruagem e verifiquei que não estava sózinho, como era habitual. Um parzinho estava todo enroscado uns dois bancos mais à frente. Para não variar, ele grosseiro, ela muito provocante.
A principio era tudo calmo, em silêncio com alguns risinhos, mas logo que a corneta tocou,
que as portas se fecharam e que a carruagem estremeceu com o arranque, começou o espectáculo o qual, dada a minha localização, não podia felizmente ignorar. Julgo, inclusivamente, que após ela ter revirado os olhos (e assim continuaram com breves pausas ao longo de todo um trajecto com mais de vinte estações) perdi a vergonha e olhei-os ostensivamente, à francesa.
Os corpos misturavam-se numa sensual e selvagem dança. Naquele erótico e animado quadro ela manejava com imaginação e arte uma paleta de língua, dentes, braços, mãos, dedos, pernas, coxas, ventre. Enrolava-se lascivamente nele, com impaciência, e tanto estava de lado, como por cima, como por debaixo dele, procurando avidamente a sua boca e quando a encontrava nela mergulhava violentamente e, então, a sua língua participava numa sôfrega sucessão de desvairados beijos e de quase raivosas, violentas e libidinosas mordedelas, enquanto as suas mãos percorriam, impaciente e atabalhoadamente, as redondezas do torço, do ventre, das coxas.
Ele era quase inerte, como um boneco insuflável.    
E o silêncio tambem se quebrou. Os risinhos eram cada vez menos e mais altos e substituidos por arfares e frases curtas em francês.
Ela, olhando para mim, resolveu, suponho, armar-se em esperta e tornar hermético o espectáculo. Começou a linguajar português! Para o meu deliciado espanto as frases estalaram cruas, e muito adequadas a cada posição, a cada fantasia bem descrita (quem,onde, como) sabiamente enquadradas pelas circunstâncias “ etceteraetal “ e acondimentadas por vernáculos e apropriados insultos, muito apaixonados mas sistematicamente centrados numa aparente insatisfação com o funcionamento do “cabrão de francês“ .
Eu estava como nunca tinha estado e passei quase uma hora de espectáculo originalíssimo e em exclusivo.
A fogosidade da moça e os seus insultos ao cabrão do francês comoveram-me e, chegada a minha estação, não resisti.
Aproximei-me, pedi licença e olhando-a bem despedi-me:
 
“Muito boa noite, gostei muito, mesmo muito. Muito obrigado”.


                                         

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