sábado, 22 de junho de 2013

Uma ignorância fantasiosa

"Nothing in the world is more dangerous than sincere ignorance...”
Martin Luther King Jr.

Sou um engenheiro muito interessado por História, nomeadamente a de Portugal, o meu país.
Também gosto, mas menos, de “estórias”. Por formação e feitio, entendo que o verdadeiro conhecimento só é acessivel ao espírito aberto. Quem quizer conhecer e tiver preconceito, nunca conhecerá a verdade. 
Esta regra, que considero de ouro a par de outra, a de utilizar a palavra correcta para a transmissão da ideia, tem-me felizmente acompanhado nesta minha vida que agora chegou ao seu Outono. Assim, quase que posso assegurar que sei o que digo, mas cada vez tenho mais dúvidas sobre o que digo, embora no caso em apreço não tenha nenhumas. 
Ora bem, as épocas natalícias trazem, não só para as crianças mas também para os adultos, algumas surpresas. Por exemplo, para mim, a de receber como prenda o livro “Máscaras de Salazar” (13ª edição). 
Quem mo deu, sabe do meu interesse pela história de Portugal e, nela, pelas suas grandezas e misérias, sobretudo pelas suas contestadas figuras.


Cito, apenas como exemplos, Afonso Henriques (a quem devemos a nossa nacionalidade, que mal conheceu os pais, que batalhou e mandou prender a mãe), Afonso III (ambicioso oportunista mas que garantiu a independência do reino em plena guerra civil, mesmo contra o irmão - o qual, não entendo porquê, continua ainda em Espanha perdido, talvez algures na catedral de Toledo -), Pedro I (ruivo gago, dançante com o povo, crudelíssimo, vingativo capador e
canibal arrancador de corações), João I (hipócrita, mentiroso e desleal), João II (entre os maiores reis, se não o maior, assassino de primos e cunhados), Pedro II (que ao irmão roubou a mulher e o reino), João IV (timorato mas implacável na degola da alta nobreza
conspiradora), Pombal (a quem se deve um enorme progresso em muitos domínios, a reconstrução da capital, tudo acompanhado de acções de uma crueldade inaudita que escandalizaram a Europa de então), Salazar (sim, ele também). 
De facto, os grandes a quem Portugal deve a sua sobrevivência, agiram, na sua maioria, de acordo com os padrões das sua épocas. Assim foi e o observador atento deve entender que os costumes das épocas marcam o comportamento dos homens que nela viveram. Por exemplo, analisar o regime de Salazar à luz dos comportamentos e hábitos de hoje é, no mínimo, ignorância, facciosismo para não dizer pura imbecilidade. 
Esclareço, para que dúvidas não fiquem, que admiro os que exercem o seu poder com rigor, honestidade e desinteresse pessoal. É o que hoje em dia faz falta. Os resultados estão à vista, hoje, passados 900 anos desde que somos nação. 
Voltando ao livro.
A novidade (estamos em 2007) interessou-me de imediato, não só pelo tema mas também pela afirmada precocidade do autor. Logo no início, num género de prefácio, lê-se: 
“Iniciado há 42 anos, é a recriação de uma crónica pessoal...”. 
Ora bem, e que me desculpem esta minha mania pela correcção e precisão das ideias, sendo a 1ª edição de 1997, a “obra” “iniciou-se” em 1955 . Como o autor (F. Dacosta) nasceu em 1945, redigiu a sua crónica pessoal com 10 anos. 
Se sim, os meus sinceros parabéns, Mozart começou mais cedo, aos 6 anos, com a composição de obras maravilhosas, mas ele era ele e nem todos podem ser como ele, não é?
                                 

Chegado à página 166 (13ªedição), li, para meu espanto na 1ª linha do 3º parágrafo: 
“ O betão armado uma das suas descobertas... (início de citação) consiste...na Guiné...meterem canos de armas...Daí o nome de armado” (fim de citação). 
A citação é, segundo o escritor, a do maior engenheiro civil português do século XX, o Sr. Prof. Dr. Eng. Edgar Cardoso. 
Foi meu professor no Instituto Superior Técnico. 
O meu mestre nunca diria a imbecilidade que é citada como sendo dele. Nunca. 
O material “betão armado pré-esforçado” é para o engenheiro o que o cão é para o homem: o seu melhor amigo. Não posso, por isso, ficar silencioso. 
Não posso tolerar inverdades sobre os meus amigos, sobretudo em assunto que leccionei como docente convidado do Instituto Superior Técnico de Lisboa durante mais de 10 anos, mais precisamente na disciplina de estruturas de betão armado, imagine-se. 
O material “betão armado” foi inventado em 1870 (tinha o Prof. Edgar Cardoso “menos 43anos”) por Joseph Monier. O material constituído pela associação do “betão” (do latim bitumen) com o aço foi estudado para uma sua aplicação a estruturas por François Hennebique em 1886 com a designação “béton armé”. 
“Armé” sem canos de armas, garantem Monier, Hennebique, eu e os milhares de alunos que ensinei na Universidade de Lisboa.
 

Também se pode ler, como demonstração de displicência (nada aceitável para quem tem a pretensão de escrever história), no último parágrafo dessa mesma fatídica página, “Quando Salazar autorizou a ponte sobre o Tejo pediu um estudo no qual participei [Edgar Cardoso] com o Duarte Pacheco...” (fim de citação). 
Poderia contar ao autor do livro a história das pontes sobre o Tejo, desde 1876 (ano em que o engenheiro Miguel Pais sugeriu a construção de uma ponte entre o Grilo e o Montijo) até 2006 (ano em que recentemente se inaugurou a travessia do rio Tejo no Carregado). 
Isto, sem omitir, claro, a comissão nomeada em 1933 por Duarte Pacheco para estudar uma travessia entre o Beato e o Montijo e, sobretudo, a génese da actual ponte 25 de Abril que tem como marco a nomeação, em 1953, de uma comissão para estudar a ligação rodoviária e ferroviária entre Lisboa e a margem sul do Tejo. 
Dos sete técnicos que constituiam a comissão, o Prof. Edgar Cardoso (que foi engenheiro da JAE até 1951) dela não fazia parte e Duarte Pacheco também não, uma vez que falecera dez anos antes, em 1943.  
Estes, Sr. Dacosta, são factos indesmentíveis, tendo o último ocorrido quando o senhor tinha apenas 8 anos e o Prof. Edgar Cardoso 40 anos. 
Depois de tanta fantasia e ignorância como é possível classificar o livro como sendo uma "obra decisiva para a compreensão do século XX português" (El País") e como é possível acreditar no resto, sobretudo no seu cerne: nas verdades de Dacosta sobre Salazar?


sábado, 15 de junho de 2013

Um olhar especial

Prólogo: Julgo que é próprio do tempo a inevitabilidade de ele nos deixar recordações que marcam, frequentementemente, o hoje com um sorriso sobre o que ontem nos angustiava.
Anteriormente, recordei alguns episódios da minha experiência militar de dois anos em zona de guerra. Hoje atrevo-me a lembrar um episódio mais antigo (1969) da minha vivência de universitário, como aluno do 2º ano do curso de engenharia civil no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. 

    “ Lá ! Mas onde é lá ? Aonde ?...” F. Pessoa
 

O programa de Física II era denso e a matéria muito dificil.  
Ele, com toda a sua sabedoria e simpatia, não conseguia comunicar, construir a ponte, estabelecer a corrente, tudo coisas espantosamente simples quando próprias da vocação pedagógica. 
Não havia nada a fazer, o seu imenso saber perdia-se, por causa do seu olhar, num sistema de comunicações que não era o nosso. 
Era, indiscutivelmente pelo seu saber, o delfim da fera catedrática, mas não tinha com a ciência a desdenhosa familiaridade que torna o impenetrável claro como água. Sabia, mas sabia cautelosa e reverencialmente. 
A presença também não ajudava. Baixo, tímido, de voz sem fulgor, desvidrado e de olhar desvirado. 
Sim, o olhar é que era o pior. 
Se houvesse exames de avaliação da capacidade docente, preocupação estranhamente ausente na admissão de professores universitários, o estrabismo seria certamente motivo de exclusão e, sem sombra de dúvida, o estrabismo divergente. 
Este entendimento é fora de moda nesta bondosa época em que todos somos iguais, pais e filhos, professores e alunos, doentes e sãos, malandros e honestos, feios e bonitos. 
E aqui, a descrição daquele olhar, só não será eventualmente considerada insultuosa porque na sua formulação teve-se o cuidado de não se utilizar o termo “vesgo“, palavra que nos tempos que correm é totalmente inaceitável. Hoje não há, como quando eu era miúdo, velhos, ceguinhos e aleijadinhos, há sim idosos, invisuais e deficientes e, até, “automobilizados” para os perfeitamente escorreitos que utilizam o carro. 
Nesse tempo a pena era genuína e pura, hoje é censurável, é proíbida. 
Então a solidariedade e a ajuda eram comportamentos naturais e descomplexados, agora são encaradas como intromissões desreguladoras. Havia solidariedade piedosa e não distanciamento, este sim próprio do faz de conta. 
Hoje, desiguais só pobres e ricos, só fracos e poderosos e só aqui é permitida a discriminação, desde que revoltosa e, então, quanto mais violenta melhor. No resto, a compaixão é vergonhosa, descabida e inaceitável por poder criar a desigualdade que se nega e que convencionalmente se rejeita. 
Ele era, portanto, o que naquele tempo se chamava vesgo, tinha o que hoje em dia é timida e bondosamente considerado uma deficiência visual. Nas aulas a explicação surgia escorreita mas, infelizmente, inofensiva. 
O olhar, aquele especial olhar, percorria, amigavel mas desorientadamente, espaços e lugares que não eram os nossos. 
O saber dele não nos encontrava. Estávamos num desesperante labirinto, ele de um lado tentando apanhar-nos, nós do outro querendo sê-lo mas completamente perdidos. 
Era evidente que o nosso querido assistente, com todas as suas incontestáveis qualidades humanas e científicas, não nos conseguia assistir, sobretudo pelo seu especial olhar que só baralhava: 

“O senhor aí no fundo, diga-me...” 
“ Senhor engenheiro...”, respondem da esquerda... 
“Não foi ao senhor que perguntei...” 
“Mas, senhor engenheiro, eu também não respondi...”, murmuram da direita.
  
Assisti eu, com estes olhos direitos que a terra há-de comer.