sábado, 15 de junho de 2013

Um olhar especial

Prólogo: Julgo que é próprio do tempo a inevitabilidade de ele nos deixar recordações que marcam, frequentementemente, o hoje com um sorriso sobre o que ontem nos angustiava.
Anteriormente, recordei alguns episódios da minha experiência militar de dois anos em zona de guerra. Hoje atrevo-me a lembrar um episódio mais antigo (1969) da minha vivência de universitário, como aluno do 2º ano do curso de engenharia civil no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. 
                                        “ Lá ! Mas onde é lá ? Aonde ?...” F. Pessoa


O programa de Física II era denso e a matéria muito dificil.  
Ele, com toda a sua sabedoria e simpatia, não conseguia comunicar, construir a ponte, estabelecer a corrente, tudo coisas espantosamente simples quando próprias da vocação pedagógica. 
Não havia nada a fazer, o seu imenso saber perdia-se, por causa do seu olhar, num sistema de comunicações que não era o nosso. 
Era, indiscutivelmente pelo seu saber, o delfim da fera catedrática, mas não tinha com a ciência a desdenhosa familiaridade que torna o impenetrável claro como água. Sabia, mas sabia cautelosa e reverencialmente. 
A presença tambem não ajudava. Baixo, tímido, de voz sem fulgor, desvidrado e de olhar desvirado. Sim, o olhar é que era o pior. Se houvesse exames de avaliação da capacidade docente, preocupação estranhamente ausente na admissão de professores universitários, o estrabismo seria certamente motivo de exclusão e, sem sombra de dúvida, o estrabismo divergente. 
Este entendimento é fora de moda nesta bondosa época em que todos somos iguais, pais e filhos, professores e alunos, doentes e sãos, malandros e honestos, feios e bonitos. E aqui, a descrição daquele olhar, só não será eventualmente considerada insultuosa porque na sua formulação teve-se o cuidado de não se utilizar o termo “vesgo“, palavra que nos tempos que correm é totalmente inaceitável. Hoje não há, como quando eu era miúdo, velhos, ceguinhos e aleijadinhos, há sim idosos, invisuais e deficientes e, até, “automobilizados” para os perfeitamente escorreitos que utilizam o carro. 
Nesse tempo a pena era genuína e pura, hoje é censurável, é proíbida. Então a solidariedade e a ajuda eram comportamentos naturais e descomplexados, agora são encaradas como intromissões desreguladoras. Havia solidariedade piedosa e não distanciamento, este sim próprio do faz-de-conta. 
Hoje, desiguais só pobres e ricos, só fracos e poderosos e só aqui é permitida a discriminação, desde que revoltosa e, então, quanto mais violenta melhor. No resto, a compaixão é vergonhosa, descabida e inaceitável por poder criar a desigualdade que se nega e que convencionalmente se rejeita. 
Ele era, portanto, o que naquele tempo se chamava vesgo, tinha o que hoje em dia é timida e bondosamente considerado uma deficiência visual. Nas aulas a explicação surgia escorreita mas infelizmente inofensiva. 
O olhar, aquele especial olhar, percorria, amigavel mas desorientadamente, espaços e lugares que não eram os nossos. O saber dele não nos encontrava. Estávamos num desesperante labirinto, ele de um lado tentando apanhar-nos, nós do outro querendo sê-lo mas completamente perdidos. Era evidente que o nosso querido assistente, com todas as suas incontestáveis qualidades humanas e científicas, não nos conseguia assistir, sobretudo pelo seu especial olhar que só baralhava: 

“O senhor aí no fundo, diga-me...” 
“ Senhor engenheiro...”, respondem da esquerda... 
“Não foi ao senhor que eu perguntei...” 
“Mas, senhor engenheiro, eu tambem não respondi...”, murmuram da direita.
  
Assisti eu, com estes olhos direitos que a terra há-de comer. 
 

                                          


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