quinta-feira, 19 de setembro de 2019

A herança muçulmana.


Há uns tempos, numa reunião de amigos, levantou-se uma discussão sobre o legado judaico-cristão em Portugal rejeitando-se simultaneamente uma qualquer herança árabe. 
Não intervim por ter ficado impressionado com algum fanatismo argumentativo e, por vezes, com a enorme ignorância. Reconheci intimamente que o assunto estava à partida manchado por uma evidente e justificada parcialidade resultante das acções terroristas sofridas por muitos países da Europa e da imagem que os muçulmanos criaram de si nos últimos séculos. Esta nada tem a ver com a civilização árabe que preservou e transmitiu a sabedoria grega ou com o requinte da corte de Granada que se manteve na Península durante 250 anos, até ao séc. XV, ou a grandeza de Suleiman o Magnífico (o grande imperador otomano do século XVI).
                              

Julgo que a ignorância, o fanatismo religioso, o quase-ódio impedem de ver e de reconhecer a verdade e, no entanto, lendo, estudando e afastando dogmas e superstições é, em geral, possível reconhecer a natureza, a origem, o destino das coisas.
Hoje, há frases que apenas são figuras de estilo mas que estão ligadas a uma herança que alguns negam e muitos repudiam pela falta de conhecimento da nossa pátria e da sua história.
Como eliminar ou carimbar como judaico-cristãs, entre outras, estas frases do dia-a-dia:
Oxalá; Dar-se como Deus com os anjos; Deus queira; Deus é testemunha; Graças a Deus; Só Deus sabe; Se Deus quiser (*); Também ser filho de Deus; Haja Deus;  Deus é grande; Nem à mão de Deus; Deus nos livre; Deus lhes perdoe; Deus o abençoe; Deus o acompanhe; Deus o oiça; Deus lhe pague; Homem de Deus; Louvado seja Deus; Meu Deus; Deus do céu, Por amor de Deus; Que Deus tenha; Sabe Deus; Santo Deus; Deus nos acuda; Valha-nos Deus; Ao deus-dará; A mão de Deus; Os desígnios de Deus; Estar-se bem com Deus; Deus o castigue; Deus lhe dê saúde. 
(*) versículos 23 e 24, capítulo 18 do Alcorão “E nunca digas de coisa alguma, sim, fá-la-ei amanhã, sem acrescentar: se Deus quiser”.
Se quase toda a Europa, de que fazemos cada vez mais parte -- mau grado alguns povos e governantes terem rejeitado uma menção ao legado judaico-cristão na sua Carta -- passa bem sem elas porque não nós? Seremos pouco inteligentes para poder e saber usar só apenas algumas e poucas vezes a palavra “God”, como o faz esse farol da humanidade que são os E.U A.? Ou fazem parte de um hábito herdado?
Para além do mais, muitos topónimos no território nacional têm raiz árabe ou resultam da associação do árabe e do latim ou são de etimologia árabe. 
Existem de Norte a Sul de Portugal, por exemplo no concelho de Sintra que conheço relativamente bem.  
                                               
Topónimos de origem árabe (aqueles que possuem raiz árabe e que permaneceram com pequenas alterações desse radical): 
Albarraque (Albarrak = "o brilhante" ou, para outros autores al-barraque, plural de al-barca = "solo duro"); Alcainça (al-kaniça = "a igreja"); Alcoruim ou Alcorvim (al-cairuáne = "o caimão"); Alfaquiques (alfaqueques, cargo muçulmano que designava o indivíduo que resgatava prisioneiros ); Alfouvar ( al-fauwara = "o bolhão"); Algueirão (al-guerame = "a gruta"); Almargem ( al-marge = "o prado"); Almoçageme (al-mesjide = "a mesquita"); Arrabalde (arabáde = "os subúrbios" ); Assafora (assahra =  "Campina"); Azenha (aççania, isto é, "a nora"); Azoia (az-zavia = "o mosteiro"); Cacém (cacéme = "o que divide" ); Moçaravia (muçtarabe = "aquele que se tornou árabe"); Queluz ( qá-luz = "vale da amendoeira"); Mucifal (maçfal = "o lugar que está em baixo"); Massamá (maçama = "o que está alto");  Meleças ( meliça = "o vazio"). 
Topónimos híbridos (resultantes da associação de dois topónimos, um árabe e um latino):
Alcolombal (da junção do artigo árabe "al" com a palavra latina "columbare", que significa pombal); Alcobela (do árabe "al- quibba" mais o sufixo "ela"); Almoster (o artigo "al" mais o termo latino " monasterium", que significa mosteiro). 
Topónimos arábicos modernos (de raiz desconhecida, mas facilmente identificáveis com a etimologia árabe): 
Abonemar,  Aljabafaria, Almornos, Almosquer, Alparrel, Alpoletim, Alvegas, Asfamil, Bogalho, Calaferrim, (o mesmo que Canaferrim, que daria mais tarde Penaferrim - S. Pedro de Penaferrim), Galamares, Mafarros (ou Nafarros), Magoito, Meleças, etc. 
Para além de Sintra, podem apontar-se outros exemplos: 
Almada ­ do árabe Al-Ma'din, significa a mina, relacionado com a riqueza aurífera das minas da Adiça; Alcochete ­ deriva da expressão árabe que significa o forno, aludindo à riqueza energética derivada da combustão das madeiras abundantes nos pinhais da margem sul do Tejo; Azeitão ­ deriva da expressão árabe que significa azeitona, remetendo para uma intensa actividade agrícola existente na encosta norte da serra da Arrábida; Arrábida deriva da expressão árabe que significa lugar de oração; Alcácer­ deriva da expressão árabe Al-Kasr que significa castelo ou palácio. Cacém (Santiago do) ­ terá origem no nome do governador muçulmano Kassen que terá comandado esta praça.
A norte de Lisboa, chegando mesmo até a Trás-os-Montes, a vila de Alfarella de Jales; no Minho, a aldeia de Alfella.
Na agricultura, o tanque, a nora e os canais de rega foram invenções islâmicas. Os árabes trouxeram árvores/alimentos como a oliveira, limoeiro, laranjeira, abóbora, cenoura, arroz e a figueira.
Mas não o esqueçamos, neste melindroso debate sobre o legado judaico-cristão, foi com o aceno da sabedoria que Adão trincou a maçã.


                                        

                                            


segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Edgar Cardoso e a Ponte sobre o Tejo

"Porque é que Edgar Cardoso não projectou a ponte Salazar sobre o Tejo? ".
 

Esta a pergunta que surge nos "termos de pesquisa" deste meu blog "Na Nuvem do Acaso".
É uma interrogação pertinente dado o prestígio e excepcional competência do Mestre Edgar Cardoso. 
Tive a honra de o ter como meu professor na disciplina de "Pontes e Estruturas Especiais" do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa.
Fui por ele muito bem classificado e sempre teve comigo um relacionamento afável que se traduziu numa carta de recomendação para a frequência do meu curso de especialização em França, mas, na minha opinião, as suas qualidades didáticas eram abaixo da média e muito longe do seu saber e experiência: excepcional engenheiro, mau professor.
Na sua actividade profissional tinha, em geral, uma característica: não apreciava a transposição para o desenho das suas soluções estruturais e previlegiava o estudo por modelos reduzidos (caso da belíssima e, em muitos aspectos, estruturalmente revolucionária ponte de S. João no Porto com troços por ele analisados em modelos à escala natural - 1/1).

Tinha enorme desprezo pelas então modernas técnicas matemáticas aplicadas ao cálculo estrutural, como era o caso do “método dos elementos finitos” só viável na prática com o aparecimento do computador.
Mas os modelos à escala natural são, como é compreensível, caros e só merecem o aval do Dono de Obra em casos muito especiais.
O Mestre era um caso especial e só ele tinha a força do prestígio a apoiar as suas exigências.
Mas voltemos ao caso da Ponte sobre o Tejo em Lisboa. Foram apresentadas a concurso várias soluções, todas elas eram inevitavelmente do tipo "ponte suspensa" e uma delas era da autoria do Mestre. A solução estrutural era única e muitíssimo avançada para o seu tempo e por isso suscitou, julgo, surpresa e muito provavelmente desconfiantes receios. A dimensão do seu vão central colocava-a na época como a maior ponte suspensa da Europa e uma das maiores do Mundo. 

Mas a razão da escolha da solução que traduzia o que é hoje a actual ponte foi fundamental uma: as condições financeiras. Por elas e só por elas a United States Steel ganhou o concurso.
O que atrás é escrito é apenas um resumo de resposta a uma interrogação colocada por um leitor. Muito mais haveria a dizer mas não muito interessante para o leitor comum.